Direito do Consumidor

Pagamento à moda antiga: ainda posso utilizar dinheiro em espécie?

Os pagamentos realizados de forma digital facilitaram a vida da maioria da população, no entanto, quem usa dinheiro acaba ficando de fora e, muitas vezes, é impedido de adquirir um produto na loja

Direito do Consumidor -  (crédito: Caio Gomez)
Direito do Consumidor - (crédito: Caio Gomez)

Na era dos pagamentos instantâneos, do QR Code e do cartões digitais, mais de 170 milhões de brasileiros não têm o à internet no país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa parcela significativa da população enfrenta dificuldades para realizar o mais básico dos direitos: o de comprar. Com a recusa de alguns estabelecimentos em aceitar dinheiro vivo, histórias de exclusão e constrangimento têm aparecido.

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

Maria das Dores Santos, 62 anos, moradora de Ceilândia, viveu na pele essa realidade. "Entrei com minhas moedas e o atendente disse que só aceitavam pagamento por Pix ou por cartão. Quando expliquei que não sabia usar essas coisas, ele me mandou embora. Eu me senti humilhada", conta. O episódio aconteceu em uma padaria da região. Maria é alfabetizada, mas como milhões de brasileiros, encontra dificuldades para lidar com tecnologias digitais.

Segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) 2024, 60% dos analfabetos funcionais têm baixo desempenho em tarefas digitais, como pagar boletos, fazer transferências ou preencher formulários on-line. No Distrito Federal, onde a taxa de analfabetismo é a menor do país (1,7%), a exclusão digital continua sendo um obstáculo. Apenas 23% dos brasilienses, entre 15 e 64 anos, têm alto nível de habilidades digitais.

Recusar pagamento em moeda corrente é proibido pelo artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que veda práticas abusivas, e pelo artigo 43 da Lei de Contravenções Penais. O comerciante pode até ter preferência por meios eletrônicos, mas não pode impor que o consumidor pague dessa forma.

Em situações excepcionais,como ameaças à segurança ou falta de troco, o estabelecimento pode adotar medidas preventivas. No entanto, isso precisa ser comunicado com antecedência e de forma clara. O desconforto com o manuseio de dinheiro não justifica a recusa do pagamento em cédulas. 

O ambulante José Carlos Silveira, 58, confirma o outro lado da moeda: "Já perdi vendas por não aceitar Pix. Não tenho celular moderno e não sei mexer com essas coisas. Me sinto deixado de lado." Após ar pela situação de perder vendas, José teve que adicionar mais um funcionário, alguém que ficasse responsável por realizar as transações digitais. 

Exclusão digital

O avanço da tecnologia é inevitável e, em muitos casos, positivo. O Pix, por exemplo, reduziu taxas bancárias e tornou o dinheiro mais ágil. Mas quando essa modernização é imposta, ela acaba discriminando algumas pessoas, seja por classe social, por etarismo, seja por qualquer outro preconceito existente. "Não podemos olhar só com os olhos de quem vive na capital e está sempre on-line. É preciso ver os rincões do país, onde o celular nem sempre pega e o banco mais próximo fica a quilômetros de distância", alerta Diogo Villela Barboza, advogado especialista em direito do consumidor.

A digitalização é um caminho sem volta, mas não pode deixar ninguém para trás. Garantir o direito ao pagamento em espécie é também garantir o à dignidade, à cidadania e à economia. Não se trata de andar para trás, mas de andar junto. O progresso precisa ser inclusivo — ou não será progresso de verdade.

Mesmo os analfabetos digitais estão presentes no mundo das redes. De acordo com o Indicador de Alfabetismo Digital (Inaf), 86% desse grupo de brasileiros utilizam o WhatsApp, enquanto 72% são usuários do Facebook. No entanto, esses públicos podem encontrar dificuldades para discernir conteúdos e interpretar informações, além da propensão para compartilhar dados falsos ou manipulados.

Combate

O Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), lançou uma campanha de conscientização para lembrar que o pagamento em espécie é um direito do consumidor. A ação também busca orientar comerciantes sobre as implicações legais da recusa ao dinheiro físico. Em nota, a Senacon afirmou que "a modernização dos pagamentos não pode ser usada como justificativa para práticas discriminatórias ou excludentes".

Para reverter esse cenário, é preciso investir em educação digital desde cedo. Ações como o programa Alfaletrando, do GDF, e o fortalecimento da EJA (Educação de Jovens e Adultos) são os importantes, mas ainda insuficientes diante do desafio. É necessário que escolas, governos e a sociedade civil atuem juntos para garantir que o digital não seja uma barreira. A tecnologia deve ser uma ferramenta de cidadania, e não um filtro de exclusão. 

Para que o analfabetismo digital seja evitado, as escolas podem implementar projetos pedagógicos que vão além de conteúdos deslocados da realidade cotidiana dos estudantes ou do estímulo a uma aprendizagem decorada. O ambiente escolar que ensina o jovem a opinar e aplicar os conceitos estudados em situações reais ajuda na formação de adultos autodidatas.

O Governo do Distrito Federal lançou o programa Alfaletrando, focado na alfabetização de crianças até os 7 anos e na recomposição das aprendizagens de estudantes dos anos iniciais do ensino fundamental . Além disso, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) oferece oportunidades para adultos que desejam retomar os estudos e adquirir habilidades digitais.

É importante recordar que a discussão vai além do meio de pagamento. Trata-se de uma questão de cidadania e igualdade. A Constituição Federal garante a todos os brasileiros o direito à inclusão social e econômica. O futuro pode ser digital, mas precisa ser construído com pontes, e não com barreiras.

O que fazer se recusarem seu dinheiro?

» Se necessário, procure assistência jurídica para acionar o estabelecimento judicialmente.

» Registre a ocorrência no Proconde sua região. A prática pode ser considerada abusiva ediscriminatória.

» Procure a Delegacia do Consumidor (Decon) e relate o fato. Recusar dinheiro pode configurar infração penal.

» Guarde fotos, vídeos e tenteconseguir testemunhas.

*Estagiária sob a supervisão de Márcia Machado

 

postado em 26/05/2025 05:00
x