
A companhia de um cachorro na infância pode reduzir o risco de se desenvolver dermatite atópica, segundo o maior estudo já realizado sobre a interação entre a genética e o ambiente nas doenças alérgicas. Publicada na revista Allergy, a pesquisa usou dados de quase 280 mil pessoas de ascendência europeia, participantes de 26 diferentes pesquisas populacionais.
Também chamada de eczema, a dermatite atópica é uma condição inflamatória crônica que afeta até 20% das crianças e 10% dos adultos. Entre os sintomas, estão ressecamento, coceira, inchaço, bolhas e outras lesões. Os pesquisadores avaliaram 24 variantes genéticas previamente ligadas ao problema e 18 fatores ambientais precoces, como uso de antibióticos, exposição à poluição, tabagismo doméstico, amamentação e presença de irmãos mais velhos.
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A interação mais significativa, contudo, foi observada em uma região próxima ao gene IL7R, e a exposição a cães. "Entre as crianças que não conviveram com cachorros, a variante genética aumentava o risco de dermatite. Mas, entre as que tiveram contato precoce com esses cães, o risco genético desaparecia", afirmam os autores, no estudo.
Laboratório
Além da análise populacional, os cientistas validaram os resultados com testes laboratoriais em células da pele humana (queratinócitos). Nos experimentos, eles observaram que, quando expostas a extratos de epitélio canino, as estruturas com o perfil genético de risco para eczema aumentavam a produção de substâncias anti-inflamatórias, especialmente de uma via conhecida por inibir processos alérgicos. "A presença do cão parece reprogramar a resposta da pele ao ambiente, favorecendo uma resposta mais tolerante e menos inflamatória. Isso pode explicar o efeito protetor observado", explica a dermatologista Sara J. Brown, da Universidade de Edimburgo, uma das autoras do estudo.
Os pesquisadores destacam que o momento da exposição é essencial. Os dados consideraram apenas as interações genéticas e ambientais até os 2 anos — uma janela crítica para o desenvolvimento do sistema imunológico. Segundo Brown, a abordagem visou evitar um viés comum em estudos observacionais: a chamada "causalidade reversa", quando pais evitam expor os filhos a determinados fatores por já apresentarem sinais de alergia.
Por outro lado, interações amplamente investigadas por estudos menores não se repetiram com força estatística no artigo publicado na Allergy. Por exemplo, a posse de gatos, a duração da amamentação e a exposição intrauterina ao tabaco não mostraram associações significativas com genes como o FLG, outro conhecido marcador de risco para dermatite atópica. "Muitos estudos menores relatam interações genéticas que não se sustentam em populações maiores. Isso nos ajuda a refinar hipóteses e evitar conclusões precipitadas", aponta Lavinia Paternoster, coautora do estudo e professora da Universidade de Bristol.
Restrição
Apesar dos avanços, os autores reconhecem que o estudo se restringe a pessoas com origem europeia e que as descobertas não podem ser automaticamente generalizadas para outros grupos étnicos, já que a frequência dos genes varia de uma população para outra. Além disso, novas pesquisas devem procurar saber se o efeito protetor dos cães se dá por alterações no microbioma da casa ou da pele, mudanças comportamentais dos tutores de pets ou uma maior exposição a microrganismos benéficos.
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Segundo Sara Brown, enquanto essas respostas não vêm, os dados oferecem esperança para famílias com histórico de eczema. "É cedo para recomendar um cão como forma de prevenção, mas esse é mais um argumento em favor dos benefícios de crescer em ambientes ricos em estímulos naturais", conclui.
Perguntas para ...
Elisa Coelho, professora do MedCof, médica dermatologista e membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia
Os resultados do estudo alteram algo em relação ao acompanhamento dos bebês com risco familiar?
Os principais riscos para eczema são, de fato, fatores genéticos. Então, quando a gente tem uma criança cujos pais têm tanto dermatite atópica quanto asma, rinite e doenças associadas, essa criança tem um risco maior de desenvolver esse espectro atópico. Então, esse continua sendo o principal risco, mas existem alguns fatores ambientais que a gente, conhecendo, pode tentar evitar. Por exemplo, sabendo que o uso de antibiótico pode aumentar o risco, podemos dar essa orientação, para que o medicamento seja usado com parcimônia, em uma estrita necessidade. Em relação à qualidade do ar, muitas vezes não se tem o que fazer, exceto se o quadro for muito grave, a ponto de a família inteira querer se mudar de cidade por conta desse fator específico. Então, acho que as principais orientações permanecem as mesmas, mas algumas coisas podem ser levadas em conta do ponto de vista educacional e preventivo.
A descoberta pode abrir caminhos para abordagens preventivas baseadas em perfil de risco individual?
A gente já faz diversas orientações baseadas em prevenção, como tipo de banho, hidratação…. Mas, claro, esses estudos vêm para agregar nas orientações, inclusive, embasá-las, para que elas continuem sendo adas para o paciente. Toda vez que a gente vê estudos sérios, de grandes meta-análises, mostrando que existem essas associações, a gente consegue ar com mais embasamento aquilo que a gente vê na prática clínica. Conforme os estudos vão mostrando as associações, elas saem do âmbito da experiência do médico, e a gente consegue fundamentar melhor as indicações.
Que cuidados devem ser tomados antes de interpretar esses resultados como uma "recomendação" para que pais comprem cães com fins preventivos?
O estudo mostra que alguns fatores ambientais podem modificar a resposta inflamatória do indivíduo. Então, quando uma população com essa susceptibilidade genética entra em contato com cães, o sistema imunológico dela a a atuar de forma "preventiva" para o surgimento de eczema tópico. Mas, na verdade, a gente não sabe exatamente qual é o papel que o cachorro tem. Por isso, acho que ainda é muito precoce a gente fazer uma recomendação como essa sabendo que podem existir outros fatores ambientais relacionados a isso.
O estudo tem limitações?
Sim. Como fazem uma meta-análise e reúnem vários estudos, os próprios autores colocam como limitação o fato de a principal população estudada ter sido a europeia, e as populações podem ter origem genética muito diferentes. O que vale para esse estudo não necessariamente é reprodutível para os brasileiros.