ARTIGO

Povos lusófonos

Para que a língua portuguesa continue a ser a quinta língua mais falada no mundo, é preciso que nossas autoridades abandonem a política de aproximação de países lusófonos para adotar a política de aproximação dos povos lusófonos

Em Goa, na Índia,  a língua portuguesa corre o risco de morrer à míngua 
 -  (crédito: INDRANIL MUKHERJEE)
Em Goa, na Índia, a língua portuguesa corre o risco de morrer à míngua - (crédito: INDRANIL MUKHERJEE)

» JORGE ANTUNES, Maestro, compositor, membro da Academia Brasileira de Música

Li, com grande interesse, o artigo que José Sarney publicou no Correio Braziliense em sua edição de 9 de maio último. O ex-presidente deu a seu artigo o título O que é LP?. O articulista relata o processo de criação da instituição, mas não responde à pergunta-título de seu texto. Eu, aqui, para não ser indelicado, também não responderei. Mas narrarei fatos que, talvez, possam permitir ao leitor formular a resposta.

Está faltando um olhar sobre a comunidade dos povos de língua portuguesa. Existe uma mobilização canhestra, bitolada, discriminatória e totalmente carente de demofilia, que tenta congregar países lusófonos e que não busca agregar todos os povos lusófonos.

Uma iniciativa voltada à integração cultural de todos os povos lusófonos foi implementada em Brasília há 25 anos. A Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional de Brasília esteve apinhada de gente na noite de 19 de abril de 1999. A superlotação do teatro se justificava: o concerto marcava a abertura do ano de festejos dos 500 anos do Brasil. Sob encomenda do Decanato de Extensão da Universidade de Brasília (UnB), escrevi a composição musical Cantata dos dez povos. Era uma obra monumental, com 64 minutos de duração. O palco também estava apinhado de gente: a Orquestra do Teatro com 80 músicos, 150 cantores do Coro Lírico da Escola de Música e do Madrigal de Brasília, quatro cantores solistas e 11 declamadores.

Verificamos ausências inesperadas na plateia. Apesar de terem sido feitos convites formais a todas as embaixadas dos países lusófonos, nenhum representante das sete representações diplomáticas havia comparecido. Sim, eram sete as nações lusófonas. Timor-Leste ainda não era um país. O mistério acerca das surpreendentes ausências só seria desvendado alguns dias depois.

Era muito difícil, para mim, homenagear o chamado "descobrimento do Brasil", por estar convencido de que o Brasil não fora descoberto. Ele havia sido invadido havia 500 anos. Não tinha acontecido um descobrimento. Em realidade, foi um encobrimento que se iniciou em 1500: um verdadeiro encobrimento cultural.

Optei, então, por homenagear a língua portuguesa, importante elo de união entre os 10 diferentes povos que se originaram da saga portuguesa da época das grandes navegações. Assim, utilizei textos de escritores de Portugal, Brasil, Macau, Goa, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola e Timor-Leste.

A UnB contava com estudantes africanos bolsistas, originários dos países lusófonos. Assim, os poemas de Agostinho Neto, Xanana Gusmão, Camilo Pessanha, Gerson Valle, Vasco Cabral, Marcelo da Veiga, Fernando Pessoa e tantos outros puderam ser ditos com vozes e inflexões enriquecidas pelos sotaques originais.

Um vazamento de informação veio, uma semana depois, esclarecer o mistério da ausência coletiva das representações diplomáticas: o concerto não homenageava apenas os países lusófonos. As autoridades haviam se sentido desconfortáveis porque o concerto homenageava também três povos que não se constituíam como países: Timor-Leste, Goa e Macau.

A língua portuguesa corre o risco de morrer à míngua em Macau e em Goa. Há alguns anos, o editor Victor Alegria, nosso cidadão patrimônio luso-brasileiro que dirige a editora Thesaurus, enviava graciosamente vários livros em nossa língua para Macau, atendendo a macauenses que denunciavam a morte gradual da língua portuguesa naquela região. Infelizmente, hoje, o concani e o marata são os idiomas mais falados naquele estado chinês.

A omissão brasileira e o desinteresse português fazem com que o mesmo fenômeno possa vir a acontecer nos territórios da Índia portuguesa, em que é praticada nossa língua: Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar-Aveli. Para que a língua portuguesa possa continuar com os seus mais de 300 milhões de falantes nativos e que continue a ser a quinta língua mais falada no mundo, é preciso que nossas autoridades abandonem a política de aproximação de países lusófonos para adotar a política de aproximação dos povos lusófonos. Ideal seria que a primeira letra P da sigla LP deixasse de significar a palavra países, para dar lugar à palavra povos.

Sarney, em seu artigo, nos ensina que a LP é presidida, em rodízio, pelos presidentes dos países em que se fala a língua portuguesa. Ideal seria que, nesse grupo, se integrassem também outros líderes, tais como o chefe do Executivo de Macau, o governador de Goa e o tenente-governador de Nagar-Aveli.

Creio que, com esse relato, o leitor já poderá dar uma resposta à pergunta de José Sarney.

 

Por Opinião
postado em 26/05/2025 03:59
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