
A regulamentação do uso da inteligência artificial (IA) tem sido um dos temas mais debatidos no Congresso Nacional. O Projeto de Lei (PL) 2.338/2023, que estabelece o marco regulatório da IA no Brasil, foi aprovado pelo Senado no final de 2024 e tramita como prioridade na Câmara dos Deputados. A proposta visa regular o uso e o desenvolvimento da IA, buscando equilibrar a inovação com a proteção dos direitos fundamentais.
A criação de uma comissão especial está sendo liderada pela deputada Luísa Canziani (PSD-PR) com o objetivo de analisar o projeto em andamento. Segundo ela, o debate sobre o uso ético e responsável da tecnologia apenas começou, e a Câmara tem papel central nesse processo. "Devemos proteger os direitos individuais e coletivos das pessoas, mas não impedindo a inovação e o desenvolvimento da IA, o trabalho da comissão será uma construção conjunta e visando à proteção de direitos", disse em entrevista ao Correio.
O relator do PL 2.338/2023 é o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que, em nota ao Correio, reafirmou seu compromisso com a missão. Ribeiro ressaltou que o debate será técnico e responsável, com foco no desenvolvimento seguro da IA no Brasil.
Desafios éticos
O uso da IA no contexto eleitoral, embora já regulamentado em parte pela Resolução nº 23.610/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), suscita preocupações. Roberto Beijato Junior, doutor e mestre em filosofia do direito e advogado atuante na área do direito eleitoral, comentou sobre o risco do uso indevido de IA para manipulação de imagens e vozes, criando conteúdos falsos.
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"O maior risco para as campanhas eleitorais é que as imagens e vozes podem proporcionar a elaboração de conteúdos desinformativos, cuja distinção para com os conteúdos verdadeiros será cada vez mais difícil." Para ele, "conteúdos produzidos por inteligência artificial têm potencial de vasta difusão, na medida em que os destinatários os aceitem como verdadeiros e atendam às suas preleções emocionais", alertou Beijato.
No Cidadania, o uso da IA já foi testado. Presidente nacional do partido, Comte Bittencourt explicou o que o motivou a produzir propaganda partidária feita 100% com a tecnologia: "Teve como objetivo principal provocar o debate público sobre o uso responsável e ético da IA na política e, com isso, abrir espaço para a discussão sobre a regulamentação nas eleições, em especial para o pleito de 2026", afirmou. Segundo Bittencourt, a campanha gerou grande repercussão e cumpriu a função de despertar a importância do tema para a sociedade.
Marcelo Senise, presidente do Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial (Iria), enfatizou outro aspecto crítico: a "IA preditiva". "Tem o poder de analisar grandes volumes de dados para direcionar mensagens políticas de forma hipersegmentada e personalizada. Isso cria um abismo entre campanhas com alto poder tecnológico e candidatos que não têm o às mesmas ferramentas. É uma desigualdade silenciosa, mas profunda, que distorce o jogo democrático ao favorecer quem pode pagar por tecnologia de ponta", alertou. Senise defende regras claras de transparência e auditoria para garantir que a IA seja usada de maneira justa e democrática.
Senise ressaltou ainda que, "mesmo diante de IAs capazes de produzir discursos, imagens e vídeos praticamente indistinguíveis da realidade, já contamos com tecnologias robustas para enfrentá-las. Ferramentas de ' digital' e rastreamento de conteúdo permitem identificar se um material é autêntico ou manipulado — e isso precisa ser amplamente adotado".
Oposição
Por outro lado, o líder da oposição na Câmara dos Deputados, Luciano Zucco (PL-RS), argumentou contra a regulamentação da IA. Para Zucco, há uma agenda da esquerda para controlar a comunicação política, especialmente nas redes sociais, onde, segundo ele, a direita tem ganhado força sem gastar dinheiro público.
"Somos muito mais assertivos e eficientes do que a máquina milionária de comunicação do governo Lula", declarou Zucco ao Correio, defendendo que o foco deve ser na educação digital da população, não na imposição de restrições. Para o parlamentar, "viés ideológico pode sufocar a inovação e afastar o Brasil da corrida tecnológica global".
Embora o debate sobre a regulamentação da IA se intensifique no Congresso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ainda não se posicionou sobre as regras definitivas para o próximo pleito. Em resposta ao Correio, o TSE afirmou que "as normas que regerão as eleições de 2026 ainda serão aprovadas". O órgão, no entanto, disse que está atento às novas tecnologias e seus impactos no processo eleitoral.
IA nas eleições
O Correio também ouviu o senador Marcos Pontes (PL-SP), ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações. Para ele, a inteligência artificial deve ser encarada como uma aliada no aprimoramento da democracia — desde que haja segurança jurídica, critérios técnicos e responsabilidade. "Se uma instituição entende que está diante de uma tecnologia disruptiva e reconhece que não possui, no momento, a capacidade de responder com a velocidade que um processo eleitoral exige, é legítimo que opte por restringir o uso da IA. Trata-se de uma decisão prudente, que deve ser respeitada. Faz parte do amadurecimento institucional do país diante de novas tecnologias", afirmou o parlamentar.
Apesar disso, Pontes não defende o texto original do PL 2.338/2023: "É extremamente prejudicial ao desenvolvimento científico, tecnológico e econômico do Brasil". Ele ainda tentou alterar o texto, "visando o desenvolvimento e uso da tecnologia para nos dar competitividade internacional, enquanto permitia o gerenciamento pragmático e eficiente de riscos". No entanto, a mudança não foi aprovada.
Já o especialista em segurança de dados e inteligência artificial e membro do IAPP (International Association of Privacy) Yago Morgan ressaltou que a grande apreensão envolve a manipulação e que "hoje o que tem aquecido o debate em torno da necessidade de regulamentação da inteligência artificial é uma preocupação que não é nova". Para ele, a "IA hoje está capitaneando esse discurso" como os "feitos ados da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o Marco Regulatório da Internet". Morgan defende que a IA seja tratada como uma ferramenta de transformação positiva, desde que a sociedade saiba moldar seus limites.
Diante dos desafios, que vão da manipulação de conteúdo à criação de desigualdade da IA preditiva, o Brasil busca um caminho regulatório que equilibre a proteção dos direitos fundamentais. Essa discussão exige uma construção técnica e responsável, alinhada à urgência de regras de transparência que não sufoquem o desenvolvimento tecnológico.