
Durante séculos, a peste assombrou a Europa, a Ásia e a África, varrendo, em algumas ocasiões, uma significativa parcela da população — as estimativas variam, mas acredita-se que de um terço a metade dos europeus morreram da doença nos anos 1300. Porém, com o tempo, a bactéria causadora das duas principais epidemias medievais foi perdendo a virulência, o que garantiu a ela a sobrevivência. Agora, cientistas sabem o que transformou um patógeno devastador em um microrganismo até hoje circulante, porém muito menos letal.
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Foi a perda de cópias de um gene chamado pla, responsável pela entrada da bactéria Yersinia pestis no hospedeiro, que amenizou a virulência da peste, segundo um artigo publicado na revista Science. Para chegar a essa conclusão, os autores fizeram comparações genômicas do microrganismo e também infectaram roedores para observar como a alteração no DNA se manifestava nos animais.
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Os pesquisadores, da Universidade de McMaster, no Canadá, e do Instituto Pasteur, na França, analisaram cepas antigas da Y. pestis — extraídas de esqueletos medievais — e modernas, isoladas durante surtos no Vietnã nos anos 1990. Ao mesmo tempo, recriaram infecções nos roedores, usando linhagens com e sem a mutação. Eles notaram que os animais com cópias reduzidas do pla demoravam mais para morrer e, em alguns casos, sobreviviam. Isso só foi visto, porém, na forma bubônica da doença (a que causou a mortalidade em massa na Idade Média). Quando a bactéria atingia o pulmão (forma pneumônica) ou o sangue (septicêmica), a letalidade continuou altíssima.
Inibição
Localizado em uma parte do DNA chamada pP1, o gene pla codifica uma enzima essencial para que a bactéria se espalhe rapidamente no organismo. Ele age facilitando a destruição de coágulos sanguíneos e permitindo que a Y. pestis se mova livremente pelo corpo. Sua ausência ou redução inibe esse processo — mas não o anula.
Os cientistas observaram que, cerca de um século após o início das duas primeiras pandemias medievais — Peste de Justiniano e Peste Negra —, a maioria das cepas analisadas apresentava menos cópias de pla. Esse padrão se repetiu no terceiro surto, que iniciou na China em 1855 e está ativo até hoje. Casos atuais da doença são registrados especialmente em Madagascar e na República Democrática do Congo; no Brasil, surtos esporádicos, principalmente no Nordeste, ainda ocorrem. Porém, os efeitos da bactéria são controláveis por antibióticos.
Segundo os pesquisadores, o fenômeno não parece ter sido um acaso evolutivo. Ao contrário, os dados sugerem que a atenuação da virulência foi favorecida por seleção natural. Embora possa soar paradoxal uma bactéria que mata menos ter mais probabilidade de sobreviver, os autores explicam que a resposta para isso está nos ratos, protagonistas da transmissão da peste.
Durante as fases mais intensas das pandemias, milhões de ratos morreram com os humanos. Com a fragmentação das colônias de roedores, uma bactéria mais branda, que desse tempo ao animal de se deslocar e infectar outros hospedeiros, tornou-se mais vantajosa, explica o estudo. No cenário devastador do pós-peste, com poucos animais, e seres humanos espalhados, era mais estratégico a Y. pestis circular lenta e persistentemente.
A hipótese foi reforçada pelos experimentos com camundongos. Em infecções subcutâneas — que simulam a peste bubônica — as linhagens com menos cópias do gene pla matavam 85% dos animais, enquanto as selvagens (com pla intacto) eram letais em 100% dos casos. "Um pequeno atraso na morte do hospedeiro pode fazer toda a diferença na manutenção da epidemia", diz o artigo, coliderado por Ravneet Sidhu, candidata a PhD no Centro de DNA Antigo de McMaster (leia entrevista).
Três perguntas para...
Ravneet Sidhu, colíder do estudo e candidata a PhD no centro de DNA Antigo da Universidade de McMaster
Como as descobertas impactam na compreensão da dinâmica histórica da peste, particularmente a transição de surtos altamente letais para epidemias recorrentes e menos graves?
Em nosso estudo, observamos que a atenuação permitiu que os camundongos sobrevivessem por aproximadamente dois dias a mais e previmos que isso teria dado aos roedores mais tempo para viajar entre suas populações fragmentadas, permitindo-lhes, posteriormente, transmitir a doença nos estágios finais da infecção. É possível que essa suavização moderada, que acreditamos ter ajudado a bactéria a sobreviver em reservatórios fragmentados de roedores, tenha desempenhado um papel em causar epidemias menos graves durante surtos históricos de peste mais recentes, mas é muito importante considerar que muitos outros fatores biológicos e socioculturais também contribuíram, como a evolução imunológica em populações humanas etc. A descoberta é uma peça de um quebra-cabeça complexo e secular.
O modelo de modulação da virulência poderia ajudar na preparação de pandemias atuais, especialmente em relação a zoonoses emergentes?
A preparação para pandemias requer uma ampla gama de pesquisas, que ocorrem sob perspectivas biológicas, históricas e socioculturais. Cada patógeno é único, e é importante lembrar disso para não generalizarmos abordagens que podem ajudar em alguns casos, mas não em todos. Por essas razões, perspectivas interdisciplinares e descobertas baseadas em dados nos fornecem recursos para adaptar nossas respostas em casos de zoonoses emergentes e pandemias. Espero que nossa pesquisa possa contribuir para o crescente conjunto de ferramentas para a preparação para pandemias.
Lições para a pandemia
O geneticista Eduardo Ribeiro Paradela, doutor em neurociências e especialista em genética forense, explica que o abrandamento na virulência observado na bactéria da peste, a Yersinia pestis, também pode ocorrer em vírus, caso do causador da covid-19. "Tanto vírus quanto bactérias estão sujeitos a pressões evolutivas que favorecem maior transmissibilidade e, em certos contextos, menor letalidade. Isso ocorre porque patógenos que permitem que o hospedeiro permaneça vivo e ativo por mais tempo têm mais chances de se espalhar", diz.
Segundo Paradela, mutações como a verificada no estudo publicado na Science podem influenciar estratégias de vigilância epidemiológica e desenvolvimento de tratamentos. "As mutações que alteram transmissibilidade, virulência ou resistência a fármacos exigem ajustes constantes nas estratégias de controle", diz. "Na vigilância, torna-se necessário o monitoramento genético contínuo dos patógenos para identificar variantes preocupantes. No desenvolvimento de tratamentos, essas mutações podem influenciar e comprometer a eficácia de medicamentos, vacinas e testes diagnósticos."
Futuro
André Luís Soares Smarra, biólogo e mestre em biofísica molecular, diz que pandemias futuras, causadas por outros patógenos, podem seguir trajetórias semelhantes à da Y. pestis. "Muitos modelos evolutivos sugerem que, ao longo do tempo, os patógenos podem evoluir para formas menos letais se isso favorecer sua transmissão", diz. "No entanto, isso não é uma regra fixa, já que o comportamento evolutivo de um patógeno depende de fatores como modo de transmissão, ecologia do hospedeiro e dinâmica populacional."
Smarra destaca o potencial da técnica utilizada pelos cientistas canadenses e ses. "O uso de DNA antigo permite rastrear como patógenos evoluíram ao longo do tempo e entender padrões de adaptação, transmissão e virulência. Quando esses dados são combinados com modelos evolutivos e epidemiológicos, é possível construir cenários mais realistas sobre como doenças emergem, se espalham e mudam."
Saiba Mais
Ravneet Sidhu, colíder do estudo e candidata a PhD no centro de DNA Antigo da Universidade de McMaster
Como as descobertas impactam na compreensão da dinâmica histórica da peste, particularmente a transição de surtos altamente letais para epidemias recorrentes e menos graves?
Em nosso estudo, observamos que a atenuação permitiu que os camundongos sobrevivessem por aproximadamente dois dias a mais e previmos que isso teria dado aos roedores mais tempo para viajar entre suas populações fragmentadas, permitindo-lhes, posteriormente, transmitir a doença nos estágios finais da infecção. É possível que essa suavização moderada, que acreditamos ter ajudado a bactéria a sobreviver em reservatórios fragmentados de roedores, tenha desempenhado um papel em causar epidemias menos graves durante surtos históricos de peste mais recentes, mas é muito importante considerar que muitos outros fatores biológicos e socioculturais também contribuíram, como a evolução imunológica em populações humanas etc. A descoberta é uma peça de um quebra-cabeça complexo e secular.
O modelo de modulação da virulência poderia ajudar na preparação de pandemias atuais, especialmente em relação a zoonoses emergentes?
A preparação para pandemias requer uma ampla gama de pesquisas, que ocorrem sob perspectivas biológicas, históricas e socioculturais. Cada patógeno é único, e é importante lembrar disso para não generalizarmos abordagens que podem ajudar em alguns casos, mas não em todos. Por essas razões, perspectivas interdisciplinares e descobertas baseadas em dados nos fornecem recursos para adaptar nossas respostas em casos de zoonoses emergentes e pandemias. Espero que nossa pesquisa possa contribuir para o crescente conjunto de ferramentas para a preparação para pandemias. (PO)
Lições para o controle pandêmico
O geneticista Eduardo Ribeiro Paradela, doutor em neurociências e especialista em genética forense, explica que o abrandamento na virulência observado na bactéria da peste, a Yersinia pestis, também pode ocorrer em vírus, caso do causador da covid-19. "Tanto vírus quanto bactérias estão sujeitos a pressões evolutivas que favorecem maior transmissibilidade e, em certos contextos, menor letalidade. Isso ocorre porque patógenos que permitem que o hospedeiro permaneça vivo e ativo por mais tempo têm mais chances de se espalhar", diz.
Segundo Paradela, mutações como a verificada no estudo publicado na Science podem influenciar estratégias de vigilância epidemiológica e desenvolvimento de tratamentos. "As mutações que alteram transmissibilidade, virulência ou resistência a fármacos exigem ajustes constantes nas estratégias de controle", diz. "Na vigilância, torna-se necessário o monitoramento genético contínuo dos patógenos para identificar variantes preocupantes. No desenvolvimento de tratamentos, essas mutações podem influenciar e comprometer a eficácia de medicamentos, vacinas e testes diagnósticos."
Futuro
André Luís Soares Smarra, biólogo e mestre em biofísica molecular, diz que pandemias futuras, causadas por outros patógenos, podem seguir trajetórias semelhantes à da Y. pestis. "Muitos modelos evolutivos sugerem que, ao longo do tempo, os patógenos podem evoluir para formas menos letais se isso favorecer sua transmissão", diz. "No entanto, isso não é uma regra fixa, já que o comportamento evolutivo de um patógeno depende de fatores como modo de transmissão, ecologia do hospedeiro e dinâmica populacional."
Smarra destaca o potencial da técnica utilizada pelos cientistas canadenses e ses. "O uso de DNA antigo permite rastrear como patógenos evoluíram ao longo do tempo e entender padrões de adaptação, transmissão e virulência. Quando esses dados são combinados com modelos evolutivos e epidemiológicos, é possível construir cenários mais realistas sobre como doenças emergem, se espalham e mudam." (PO)