Por Alexandre Sales de Paula e Souza* — A Constituição da República de 1988 estabeleceu que todos os julgamentos do Poder Judiciário são públicos, sob pena de nulidade (artigo 93, inciso IX). Essas decisões também devem, necessariamente, ser fundamentadas. O caráter público dos julgamentos judiciais permite conhecer as razões que motivaram determinada deliberação, possibilitando sua análise por qualquer pessoa, seja diretamente interessada ou não.
Partindo dessa premissa, vale dedicar alguma análise à recente decisão da 3.ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que estabeleceu, por maioria, ser inviável a solicitação direta de relatório de inteligência financeira (RIF) pelo Ministério Público ao Coaf, sem autorização judicial. Nas palavras do STJ, o Tema 990 do Supremo Tribunal Federal não autoriza a requisição direta de dados financeiros por órgãos de persecução penal sem autorização judicial.
Para tentar compreender o sentido dessa decisão, é necessário analisar o texto do Tema 990 do STF, que possui repercussão geral e alcança todos os casos do país:
"É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional."
O Supremo não apenas analisou a questão do sigilo bancário, mas também o poder investigatório do Ministério Público, harmonizando os bens jurídicos em conflito.
A perplexidade que permeia a decisão da 3.ª Seção inicia-se com a constatação de que o mesmo documento informativo — o RIF — será considerado nulo caso solicitado pela polícia ou pelo Ministério Público sem autorização judicial, mas não o será caso o próprio Coaf o remeta à mesma polícia ou ao mesmo Ministério Público, também sem autorização judicial. Dependendo da via, um mesmo expediente será considerado nulo ou não.
Além de incompreensível, a construção parece contraditória, evidenciando divergências entre a visão da 3.ª Seção do Superior Tribunal de Justiça e a do Supremo Tribunal Federal. E, de fato, são.
Inclusive, é possível afirmar que, caso se consolide, o acórdão do STJ será responsável por uma avalanche de decretos de nulidade probatória na matéria penal. A decisão sequer modula os efeitos desse entendimento no tempo, permitindo sua retroatividade indiscriminada para inquéritos policiais e ações penais ainda ativas que, em algum momento, tenham se valido de relatórios de inteligência financeira demandados ao Coaf.
Nos últimos 20 anos, o Ministério da Justiça criou o Programa Nacional de Capacitação no Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD), constituído por instruções realizadas em todo o país para policiais e membros do Ministério Público, sempre com a participação de servidores do Coaf, incumbidos exatamente de demonstrar como os órgãos de persecução penal deveriam proceder para demandar relatórios de inteligência financeira ao órgão. Todo esse trabalho pode ser jogado fora caso prevaleça a decisão do STJ.
É, no mínimo, curioso constatar que o PNLD foi instituído exatamente a partir de inspeções realizadas por organismos internacionais, que, à época, constataram serem pífios os resultados do combate à lavagem de ativos no Brasil.
Registre-se que o intercâmbio de inteligência financeira com o Coaf se inicia com o cadastramento prévio do policial ou membro do Ministério Público na plataforma do órgão, com autenticação do o via assinador digital (token). Em seguida, faz-se o preenchimento eletrônico da página de demanda e a digitação do F ou CNPJ a ser pesquisado, com indicação das razões da busca. O solicitante deve indicar a natureza do procedimento investigatório instaurado e inserir cópia digital da portaria desse procedimento.
Uma vez enviada a solicitação, o sistema realiza a verificação do banco de dados do Coaf sobre a existência de registro desse F ou CNPJ, e um analista elaborará o RIF com os dados recuperados. É forçoso concluir que a presença de justa causa é mais evidente na solicitação de intercâmbio dirigida ao Coaf do que na comunicação de ofício.
Nada disso é considerado elemento probatório autônomo, mas apenas mera informação de inteligência financeira, sendo necessária a produção de outras provas para que seja demandado judicialmente eventual afastamento do sigilo bancário.
Tanto a Primeira quanto a Segunda Turma do STF possuem acórdãos reafirmando o Tema 990, permitindo o trânsito dessas informações, seja qual for a via — em oposição, permita-se dizer, ao entendimento do STJ —, para considerar válido o intercâmbio de informações do Coaf com a polícia e com o Ministério Público, seja de ofício, seja a pedido dos órgãos de investigação criminal (Primeira Turma: Rcl 61944 AgR, Relator Min. Cristiano Zanin, julg. em 02/04/2024, publ. em 28/05/2024; Segunda Turma: HC 246060 AgR, Relator Min. Edson Fachin, julg. em 07/04/2025, publ. em 22/04/2025).
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Os registros de inteligência financeira são ferramentas essenciais para investigações contra a criminalidade organizada, tráfico de drogas e armas, e crimes contra a istração pública.
Criar embaraços para que os órgãos de investigação possam demandar intercâmbio de inteligência financeira com o Coaf também representa verdadeiro retrocesso no esforço para inserir o Brasil no contexto mundial de combate à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, podendo trazer reflexos negativos nas avaliações realizadas pelo GAFI/FATF.
Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público e Social do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios*
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